ESTADO DE NECESSIDADE
Conforme preceito do CP, art. 24, estado de necessidade é a causa de exclusão da ilicitude que depende de uma situação de perigo, caracterizada pelo conflito de interesses lícitos que se soluciona pela autorização do ordenamento jurídico para o sacrifício de um deles em preservação do outro.
Tem natureza jurídica de causa de exclusão da ilicitude, A despeito da divergência doutrinária que discute se o estado de necessidade seria uma faculdade (Nelson Hungria) ou um direito (Aníbal Bruno), trata-se de direito subjetivo do réu, pois, presentes os requisitos legais, o juiz deve conceder a benesse, comunicável a todos os coautores e partícipes.

1. TEORIAS.

a) Teoria unitária: para essa teoria, o estado de necessidade é causa de exclusão da ilicitude, desde que o bem sacrificado seja de igual valor ou de valor inferior ao bem jurídico preservado. Assim, exige-se a razoabilidade na conduta do agente.
Foi a teoria adotada pelo CP, art. 24. Se o interesse sacrificado for superior ao preservado, subsiste o crime, diminuindo-se a pena (CP, art. 24, §2º).

b) Teoria diferenciadora: com alicerce no princípio da ponderação de bens e deveres, diferencia o estado de necessidade justificante (excludente da ilicitude) e o estado de necessidade exculpante (excludente da culpabilidade).
Há estado de necessidade justificante com o sacrifício de bem jurídico de menor relevância do que o bem protegido. No estado de necessidade exculpante, o bem jurídico sacrificado pode ser de valor igual ou até mesmo superior ao bem protegido. Configura a inexigibilidade de conduta diversa. No Brasil, o estado de necessidade exculpante somente foi adotado pelo CPM, art. 39.

c) Teoria da equidade: prega a manutenção da ilicitude e da culpabilidade. A ação em estado de necessidade não é correta, mas não pode ser punida por razões de equidade.

d) Teoria da escola positiva: pugna pela manutenção da ilicitude. Todavia, o ato deve permanecer impune por ausência de perigo social e temibilidade do agente.

2. REQUISITOS.
A análise dos dispositivos penais que instituem o estado de necessidade no ordenamento penal pátrio revelam alguns requisitos cumulativos para a sua configuração.

2.1. Situação de necessidade.

a) Perigo atual: o perigo é a exposição do bem jurídico a uma situação real de probabilidade de dano, oriunda da natureza, seres irracionais ou mesmo de atividade humana[1]. Esse perigo deve ser atual ou iminente (há dissenso na doutrina quanto ao iminente, pois alguns não admitem sua presença, posto que a lei não dispões expressamente, como fez no art. 25).

b) Perigo não provocado voluntariamente pelo agente: não caberá estado de necessidade no caso em que o próprio sujeito, voluntariamente, provocou o perigo.
Aqui a discussão reside no termo "voluntariamente". Essa conduta voluntária abrange a forma dolosa e culposa?
Parte da doutrina entende que a palavra 'voluntário' requer conhecimento, vontade, dolo. Assim, quem age culposamente criando uma situação de perigo poderia valer-se do estado de necessidade[2].
Outra banda sustenta que a atuação culposa também é voluntária em sua origem, diante da imprudência, negligência ou imperícia, com as quais o Direito não pode cooperar[3]. Ademais, em interpretação sistemática do Código Penal, art. 13, §2º, "c", vislumbra-se tal assertiva.

c) Ameaça a direito próprio ou alheio: no Brasil, qualquer bem jurídico, desde que legítimo, pode ser protegido quando enfrentar um perigo concreto, capaz de configurar o estado de necessidade.

d) Ausência do dever legal de enfrentar o perigo: é o disposto no CP, art. 24, §1º. Fundamenta-se apenas na vontade de evitar que pessoas que tem o dever legal de enfrentar situações perigosas se esquivem de fazê-lo injustificadamente.
Aqui há uma celeuma doutrinária com relação à expressão "dever legal".
Para uma primeira corrente, a expressão deve ser interpretada restritivamente, cuja abrangência do termo decorre de lei[4].
Uma segunda corrente afirma que a expressão há de ser interpretada extensivamente, compreendendo qualquer espécie de dever jurídico[5]. Parece ser a mais acertada.

2.2. Fato necessitado.

a) inevitabilidade do perigo por outro modo: o fato necessitado, isto é, a conduta lesiva ao bem jurídico, deve ser absolutamente imprescindível para evitar a lesão ao bem jurídico.
Apresenta, assim, um nítido caráter subsidiário, uma vez que o estado de necessidade deve ser utilizado em ultimo caso, se não houver outro modo de se proteger o bem ameaçado.

b) proporcionalidade: também chamado de razoabilidade, refere-se ao cotejo de valores, ou seja, à relação de importância entre o bem jurídico sacrificado e o bem jurídico preservado no caso concreto.
Conforme teoria unitária adotada pelo CP, art. 24, o bem preservado deve ser de valor igual ou superior ao bem sacrificado.

3. ESPÉCIES.
A divisão do estado de necessidade leva em conta alguns critérios:

3.1. Quanto ao bem sacrificado:
Ü Justificante: o bem sacrificado é de valor igual ou inferior ao bem preservado. Exclui a ilicitude.
Ü Exculpante: o bem sacrificado é de valor superior ao bem preservado. A ilicitude é mantida, mas pode afastar a culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa.

3.2. Quanto à titularidade do bem jurídico preservado:
Ü  Próprio: protege-se bem jurídico pertencente ao autor do fato necessitado.
Ü  De terceiro: o autor do fato necessitado tutela bem jurídico alheio.

3.3. Quanto à origem da situação de perigo:
Ü  Agressivo: é aquele em que o agente pratica o fato necessitado contra bem jurídico pertencente a terceiro inocente. O autor deve indenizar o dano suportado por terceiro (CC, art. 929) cabendo ação de regresso contra o causador do perigo (CC, art. 930).
Ü  Defensivo: é aquele em que o agente pratica o fato necessitado contra bem jurídico pertencente àquele que causou o perigo.

3.4. Quanto ao aspecto subjetivo do agente:
Ü  Real: a situação de perigo efetivamente existe. Exclui a ilicitude.
Ü  Putativo: a situação não existe, mas o autor do fato necessitado a considera presente. A ilicitude é mantida, podendo ser afastada a culpabilidade em caso de erro escusável. Se inescusável, subsiste a culpabilidade, responsabilizando o agente por crime culposo (CP, art. 20, §1º).

4. ESTADO DE NECESSIDADE RECÍPROCO.
É a ocasião em que duas ou mais pessoas, simultaneamente, acham-se em estado de necessidade, umas contra as outras. Afasta-se a ilicitude do fato. Um grande exemplo desse caso é a obra "o caso dos exploradores de caverna", ou ainda a famosa "tábua de salvação", no caso de náufragos, narrado por Basileu Garcia.

5. CASOS ESPECÍFICOS DE ESTADO DE NECESSIDADE.
Além da regra geral delineada pelo CP, art. 24, o ordenamento prevê, na parte especial do código, outros casos de estado de necessidade.
v  CP, art. 128, I, permitindo o aborto necessário ou terapêutico;
v  CP, art. 146, §3º, inexistindo constrangimento ilegal em intervenção médica-cirúrgica necessária.
v  CP, art. 150, §3º, II, inexistindo violação de domicílio quando adentra-se a residência para resguardar interesse maior;
v  CP, art. 151, 153 e 154.

6. SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS.

6.1. Estado de necessidade e crimes permanentes e habituais.
Em regra, não se aplica a justificativa no campo dos crimes permanentes e habituais, uma vez que não há atualidade do perigo e inevitabilidade do fato necessitado.
Num caso isolado, a jurisprudência reconheceu essa possibilidade em crime habitual de exercício de arte dentária (CP, art. 282) em zona rural carente de profissional habilitado.

6.2. Estado de necessidade e erro na execução.
O estado de necessidade é compatível com a aberractio ictus (CP, art. 73), onde o agente, visando afastar o perigo, erra nos meios de execução e atinge pessoa ou objeto diverso do desejado.

6.3. Estado de necessidade e dificuldades econômicas.
A dificuldade econômica, inclusive com a miserabilidade do agente, não comporta estado de necessidade.
Em casos excepcionais, admite-se a prática de fato típico como medida inevitável para a satisfação de necessidade estritamente vital que a pessoa, não obstante o seu empenho, não conseguiu alcançar de forma lícita.


[1] Pode advir até mesmo do próprio agente. Ex: suicida pula no mar, se arrepende e rouba barco pra não morrer afogado.
[2] Compartilham desse entendimento Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Damásio de Jesus e Heleno Cláudio Fragoso.
[3] Aqui estão E. Magalhães Noronha, José Frederico Marques, Francisco de Assis Toledo e Nelson Hungria.
[4] Nelson Hungria.
[5] Bento Faria, Costa e Silva e Galdino Siqueira.
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